2007-23
Natal no Minhocão, 2009
Projeto em residência no Pedregulho (Benfica), Rio de Janeiro |
Project in residency at Pedregulho (Benfica), Rio de Janeiro
Agradecimento especial a todos os moradores do edifício que participaram
de alguma forma desta vivência e que aparecem nas imagens do projeto |
Special thanks to all dwellers who are part of this project
Texto Luiza Baldan | English version
Texto Mauricio Lissovsky | English version
Publicado | Published Utopias da vida comum, catálogo do pavilhão brasileiro da 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza ; São Casas / Luiza Baldan. Rio de Janeiro : Noise/Automática, 2012; Fotografia na arte brasileira séc XXI / Isabel Diegues ... [et al.]. Rio de Janeiro : Editora Cobogó, 2014; ArtReview Future Greats, 3/2014 + poster ; Escavar o Futuro / Renata Marquez ... [et al.]. BH : Fundação Clóvis Salgado, 2014.
Natal no Minhocão, 2009
Impressão com tinta de pigmento mineral em papel algodão | Printing with mineral pigment ink on cotton paper
120 x 120cm ; 110 x 140cm ; 60 x 60cm ; 30 x 30cm
Hexa, 2009
Video, 1’26”
Ed. 3 + 2 P.A.
Exposições individuais | Solo shows
São Casas, CCD/Studio-X Rio, 10.10.2012 – 13.11.2012
Curador | Curator Guilherme Bueno
Texto Guilherme Bueno | Text English version
Algumas séries, MAC, Niterói, 10.12.2011 – 26.02.2012
Curador | Curator Guilherme Bueno
Texto Guilherme Bueno| Text English version
Exposições coletivas | Group shows
Utopias da vida comum, Pavilhão Brasil, 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, 22.05- 21.111.2021
Ter lugar para ser, Centro Cultural São Paulo, 19.09 - 07.12.2015
Curador | Curator Mario Gioia
Frente à Euforia / Frente a la Euforia, Oficina Cultural Oswald de Andrade, São Paulo, 14.05 - 04.07.2015
Curadores | Curators Fabio Zuker, Isabella Rjeille e Mariana Lorenzi
Prêmio Aquisições Prêmio Marcantonio Vilaça Funarte 2013, MAM Rio
Escavar o Futuro, Palácio das Artes, Belo Horizonte, 10.12.2013 – 02.02.2014
Curadores | Curators Renata Marquez, Felipe Scovino
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Hoje faz 17 anos que meu pai morreu e fui obrigada a me mudar pela 8ª vez. Hoje fiz minha mudança número 26.
Encontrei minha família e despedi-me dela.
Conheci uma família nova.
Senti-me recebida com calor, carinho e atenção.
O medo do desconhecido terminou na amabilidade do outro.
Muitas são as janelas neste prédio de muitos.
Sensação de que tudo ficou para trás.
Sinto-me tão longe do presente próximo e tão perto de um passado qualquer, de cidade pequena e vizinhos queridos.
O apartamento tem vista de torre e ar de casa.
Estou acolhida em meio aos pertences da Dona Leda. Faz três meses que ela partiu.
Os objetos ainda quentes, cachorros de porcelana que latem calados na estante.
Imagino como seria a sua vida, junto à família que agora convivo.
Faço retratos a fim de homenagear os que aqui vivem.
Vejo nos seus olhos uma ternura de agradecimento por meu gesto simples e afável.
Participei da alegria do corredor, parte rua-parte pátio-parte sala, local onde crianças deitam, eu deito, comida se apronta, comparte-se cerveja, música e conversas.
Respeito esta casa como se fosse minha. Ela agora me pertence.
Vejo as manchas no teto das infiltrações mas não me abalo. Desvio o olhar para o Jesus emoldurado, com um tercinho pendurado nele, e sinto-me feliz.
Fogos de artifício, hino de futebol, forró e milhões de outros sons embalam a minha noite.
É bom estar sozinha e ter silêncio.
Existe um momento de paz onde o descanso é necessário. Não mais me pressiono com decisões. Vivo cada instante com intensidade, nem muita nem pouca, mas de forma genuína.
Quero estar aqui e todo o resto me importa de menos.
Não me atinge a precariedade do lugar. Isso não sobressai na minha experiência romantizada desta casa.
Vivo outra década em 15 dias do ano de 2009.
Gosto de dormir cheirando o pé da mamãe. O chulé dela é bom.
Ela namorava o dono da mercearia que morreu.
Hoje em dia quem toma conta, de favor, é o tio.
Ele traz o pão fresco de manhã e viaja para Campo Grande no final de semana.
Aqui no corredor somos todos uma família. Havia até o plano de juntarmos os apartamentos abrindo uma janela entre as salas, para as conversas mais privadas. Mas ficaram com medo da tia do outro lado que era muito encrenqueira.
Já somos a quarta geração de mulheres. As famílias cresceram juntas, se multiplicaram.
A do 614 é madrinha da do 612, que é madrinha da do 614, e assim vai.
Acharam uma filhote de cachorro abandonada e ninguém podia ficar com ela. A menina chorou muito porque queria a cadelinha. Os outros cachorros do corredor sentiram o cheiro e ficaram alvoroçados.
Todos pro banho para tirar a murrinha.
A molecada pega a câmera russa de antigamente e brinca estarrecida.
Querem apertar o disparador mesmo antes de escolher a foto.
A curiosidade é linda e anima o processo de convívio.
Tinha um menino especialmente interessado. Sério, arisco, ele pegava a câmera decidido.
Cada criança com seu encanto. Um somatório de mini-personalidades que fazem deste lugar único.
Desenharam até dormir. suco de goiaba+suco de uva+guaraná+canetinha+lápis de cera+papel+guaraná+papel+caneta+guaraná+tv+chave de casa+sono.
De pequena eu batia muito nela e também batia nos outros que queriam bater nela. Só eu podia bater.
Minha filha bate na filha dela.
Sempre fomos melhores amigas.
Eu bato o bolo para ela, para você e para a vizinha, e assim não dá ciúme.
É melhor comer ainda quentinho, com o brigadeiro mole.
Passos, cachorros, pássaros, maquita, chuva, carros, buzinas, crianças, vassoura raspando o chão, bola, motor de caminhão.
Tiros.
Parece que são dentro de casa, no corredor.
São no morro.
Algumas pessoas continuam tomando cerveja na mureta.
No mesmo minuto meu telefone toca. Coração aperta.
Mudo de canal. Pânico. Xurupita.
Faz muito calor e muita preguiça.
O ventilador toca uma musiquinha que dá sono. Ventinho quente, abafado, de tarde morta. Nem café dá jeito.
Chego na janela para ver a paisagem de longe, mas o sol da tarde castiga.
Dou a volta para a outra vista e o pessoal lá embaixo está queimando cobre.
Mais calor, mais fumaça.
As crianças não sentem nada disso e brincam eufóricas na beira da laje.
Os mais sortudos foram para a piscina de algum parente.
Espero alguém bater na porta, mas me lembro de que já está aberta. É só entrar.
A buzina do padeiro toca alto, a manicure trabalha no corredor.
A cachorra Madona dorme feliz de barriga na cerâmica fria.
O perfume do recém-banhado invade a sala.
Vai chover. As nuvens se aproximam.
O quarto é rosa.
Ao abrir a porta de manhã vejo um corredor iluminado de verde e amarelo, com rasgos de sol pelo chão, pelas portas, pelos livros na estante.
A penumbra matinal é filtrada por cortinas e toalhas, aquecendo os objetos com uma luz fraquinha.
O Snoopy de porcelana recebe um facho especial, quase um holofote.
À noite o vão da escada é lilás, cintilando pequenos quadrinhos na parede.
Meu tio ganhou esse apartamento quando trabalhava para o governo, mas como preferia morar perto do jardim, o cedeu para meus pais.
Eu tinha 5 anos.
Um dia um funcionário da administração veio investigar e regularizar os moradores. Pelo sobrenome da família ele reconheceu que era sobrinho da minha mãe. Não se viam há pelo menos 30 anos.
Vivo com minhas filhas, netas e meu marido. Não penso em sair daqui até morrer.
Muitos já vi chegar e passar, e hoje tomo cerveja sozinha por falta de companhia.
Hoje me disseram que faço família em todo lugar.
No início da residência artística eu não podia imaginar que isto de fato aconteceria.
Sentir-se acolhido não necessariamente significa ter afinidade.
Hoje deixei a casa que me devolveu um tanto de coisa que havia perdido por aí.
Tive que sair e abraçar e chorar e doer.
Tive que prometer para mim mesma que aquele amor inventado em tão pouco tempo não cessaria naquela partida.
Volto para o Natal.
Volto para aquele corredor que foi tão casa quanto a minha casa.
Volto para o calor das histórias embaladas a risos e gritos.
Ontem vi um álbum de fotografias antigas. Ri das caretas das crianças que hoje são adultos. Vi a semelhança genética das pessoas e a permanência grifada daquele cobogó, daquele corredor.
Agora eu estou sem casa, mas de volta a um cômodo fechado, sem comunicação externa além do barulho da rua movimentada e urbana do bairro de Botafogo.
De volta a braços confortáveis que estavam adormecidos aqui.
Fecho o olho e um rostinho de criança vem na lembrança. Sorrio.
Eles ficaram de me ligar para saber se eu tinha chegado bem.
Difícil responder a uma pergunta dessas num momento em que conquisto tanto, me emociono tanto, mas deixo algo muito potente para trás.
Não existe mágica que faça com que aqueles dias se prolonguem.
As fotografias que eu fiz servirão de álbum para alguma outra conversa daqui a 20 anos, seja deles, minha ou nossa. Servirão de mapa para me levar de volta àquele lugar e adoçar a memória. Toda bala Juquinha me levará ao esconderijo, ao pote verde em forma de maçã, onde reencontrarei aquela felicidade.
Muitos fogos.
Uns de artifício, outros de verdade.
Queimaram o mato todinho.
Em vez de verde, agora é preto.
Uma pipa voa bem alto e, depois que avisto a primeira, já são dezenas dançando no céu.
Hoje é dia de festa.
Bolinho de bacalhau em muitas casas.
As famílias trabalham e celebram ao mesmo tempo.
Voltei ao corredor encantado e reencontrei os amigos.
Até o de quatro aprendeu a escrever "afeto" com pauzinhos de madeira.
Os sofás e a cortina novos chegaram.
A sala se ilumina das tonalidades recentes.
Um lugar é inaugurado.
As crianças ajudam a limpar mas sem querer molham a flanela.
A chave esquecida no portão dá entrada a outros menos presentes.
Hoje é dia de festa.
Roupas são estreadas.
A geladeira de um guarda a cerveja do outro.
Eu trouxe pudim.
Latinha, latinha. É a hora do gato comer.
Vai e vem, entra e sai.
Sandálias novas.
Feliz da vidá.